15/08/2018 - GERAL

Discussão deve chegar ao STF, que deverá decidir quanto à legitimidade deste novo tipo de arranjo constitucional

Em junho deste ano, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou que as Corregedorias-Gerais de Justiça proíbam os cartórios de seus respectivos estados de lavrarem escrituras públicas de uniões poliafetivas, ou seja, de registrarem relações que envolvam mais de duas pessoas. Não obstante a orientação definida pelo CNJ, deve-se observar que se trata de tema polêmico, objeto de divergência inclusive entre os conselheiros. O relator e corregedor-geral de Justiça João Otávio de Noronha votou a favor do pedido de providência da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), no sentido da proibição das escrituras de uniões poliafetivas, afirmando que “ninguém é obrigado a conviver com tolerância de atos cuja reprovação social é intensa”.

Os argumentos de ordem jurídica para a proibição da elaboração desse tipo de escritura remetem à previsão da bigamia como crime no art. 235 do Código Penal brasileiro e a previsão da “fidelidade recíproca” como dever de ambos os cônjuges no art. 1.566, I, do Código Civil, o que fundamentaria a existência de um princípio monogâmico no direito brasileiro. Do ponto de vista extrajurídico destacam-se a reprovação religiosa e moral de relações com mais de duas pessoas, a partir da ideia de que a monogamia se constituiria em um princípio basilar da sociedade brasileira.

Em primeiro lugar, deve-se levar em consideração que tais previsões normativas estão precipuamente direcionadas às hipóteses de casamento, e não à união estável, e que vêm sofrendo flexibilizações de diversas ordens, como o reconhecimento de determinados direitos à concubina. Não há no ordenamento jurídico brasileiro qualquer vedação expressa à possibilidade de que duas ou mais pessoas registrem uma união conjunta em cartório. Sob esse aspecto, deve-se preservar a autonomia existencial, que importa o “afastamento de ingerências estatais e a autogestão da liberdade na vida privada”, sem descurar que o exercício da liberdade exige responsabilidade, como já ressaltou Gustavo Tepedino.

É importante ressaltar que, nesse tipo de relação, as pessoas envolvidas se relacionam entre si, convivendo consensualmente de forma conjunta, pelos quais todos os sujeitos envolvidos estão simultaneamente ligados uns aos outros, o que não se confunde com os casos em que uma pessoa casada ou que vive em união estável mantém relacionamentos paralelos, sem o consentimento dos parceiros. Assim, a validade deste tipo de escritura revela-se, na verdade, no reconhecimento de uma configuração relacional que já existe na prática e envolve o livre consentimento dos parceiros.

A expectativa é a de que a discussão eventualmente chegue ao STF, que deverá então decidir quanto à legitimidade deste novo tipo de arranjo constitucional. A análise das decisões anteriores em outros temas espinhosos do direito de família pode ajudar a indicar a tendência acerca de qual a posição o tribunal adotará no tema das uniões poliafetivas. Para além de conjecturas e previsões, cabe questionar se caso as premissas e fundamentos destas outras decisões forem seriamente consideradas pelo STF – i.e. se ele sentir atrelado no presente ao que afirmou no passado – haveria realmente diversas possibilidades decisórias no tema.

O julgamento mais consequencial para o tema das uniões poliafetivas é provavelmente o que reconheceu a legitimidade das uniões homoafetivas (ADPF 132 e ADI 4277). O reconhecimento dos casais formados por dois homens ou duas mulheres como entidade familiares representou uma transformação na noção jurídica de família que não pode ser menosprezada. Trata-se, com efeito, de mais uma etapa no processo de questionamento de um modelo tradicional – e historicamente exclusivo – de família, caracterizado por ser patriarcal, heteronormativo, monogâmico, matrimonial e indissolúvel. Assim, algumas das suas características vêm sendo objeto de desconstrução ao longo do tempo, como, por exemplo, a prevalência do homem sobre a mulher – através por exemplo do Estatuto da Mulher Casada (Lei nº 4.121/62), do art. 226, §5º da Constituição e da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06) – e a indissolubilidade – através da Lei do divórcio (Lei nº 6.515/77) e da EC nº 66/10–, enquanto outros elementos, como a “diversidade de sexos” e o “matrimônio” embora permaneçam possíveis, não são mais condições necessárias à formação da família, graças ao reconhecimento de outros arranjos familiares ao lado do modelo único do casamento heterossexual.

Por outro lado, as uniões estáveis homoafetivas continuam se baseando em uma série de pressupostos como, por exemplo, serem formadas por apenas duas pessoas. Em que pese o caráter relativo de rompimento com os padrões de família tradicionais produzido pelas uniões homoafetivas, muitos Ministros procederam a afirmações gerais sobre a ampla liberdade das pessoas em decidirem autonomamente sobre os arranjos familiares que desejam integrar, sendo vedadas quaisquer discriminações que tenham por fundamento a realização de padrões morais ou religiosos. Assim, as únicas limitações possíveis seriam aquelas destinadas à proteção de direitos de terceiros. Com efeito, esta ideia restou expressa na ementa: “consagração do juízo de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um legítimo interesse de outrem, ou de toda a sociedade, o que não se dá na hipótese sub judice”, a partir do voto do ministro-relator Ayres Britto. A mesma ideia foi expressa, ainda, no voto de outros ministros, como Luiz Fux1, Carmen Lúcia2 e Marco Aurélio3.
Os ministros deram destaque ao entendimento da família não como um fim em si mesmo, mas como um instrumento funcionalizado à promoção da dignidade dos seus integrantes, a partir da primazia dos direitos e liberdades individuais em face das metas coletivas. Assim, a nova disciplina jurídica do tema com foco na liberdade e nos direitos fundamentais trazida pela Constituição de 1988 e o avanço social no campo dos costumes foram saudados em distintos votos. De acordo com o raciocínio, a ideia de família abarcaria um número amplíssimo de formatações. Em seu voto, o ministro Fux chegou a apresentar uma conceituação dos elementos necessários à configuração de uma família nestes moldes: “O que faz uma família é, sobretudo, o amor – não a mera afeição entre os indivíduos, mas o verdadeiro amor familiar, que estabelece relações de afeto, assistência e suporte recíprocos entre os integrantes do grupo. O que faz uma família é a comunhão, a existência de um projeto coletivo, permanente e duradouro de vida em comum. O que faz uma família é a identidade, a certeza de seus integrantes quanto à existência de um vínculo inquebrantável que os une e que os identifica uns perante os outros e cada um deles perante a sociedade. Presentes esses três requisitos, tem-se uma família, incidindo, com isso, a respectiva proteção constitucional”.

A premissa de que existe uma ampla liberdade para os sujeitos determinarem o tipo de arranjo familiar que desejam integrar, limitada somente pelos direitos de terceiros, coloca em questão a possibilidade jurídica do rompimento de outros elementos constitutivos da ideia de tradicional de família. Assim, é possível se a adoção séria dessa premissa pelo STF permitiria ao mesmo deixar de reconhecer a legitimidade jurídica da família poliafetiva, Dentro da lógica que restou firmada pelo tribunal no julgamento das uniões homoafetivas, existiria algum motivo que justifique a limitação do regime das uniões estáveis ou do casamento civil a entidades formadas por apenas duas pessoas? Além da tradição ou do significado histórico do matrimônio, rechaçados desde o início como motivos válidos nos votos de mais de um ministro, os únicos argumentos que poderiam ser trazidos à baila para tanto seriam as dificuldades jurídicas geradas tanto do ponto de vista administrativo (p. ex. dificuldades no campo do direito previdenciário), quanto nos direitos dos integrantes da relação (p. ex. como proceder caso um membro de um casamento entre três pessoas queira continuar casado com um, mas não com outro, e aquele quiser continuar casado com ambos?).

Embora estas complexidades efetivamente demandem soluções e uma boa dose de criatividade, a necessidade de equacionamentos operacionais não parece ter vigor axiológico suficiente para limitar a liberdade constitucional dos sujeitos, principalmente no campo dos direitos existenciais e da “busca pela felicidade”. A conclusão necessária seria, portanto, pelo reconhecimento jurídico da família poliafetiva.

1 “Resta claro, por conseguinte, que o desprezo das uniões homoafetivas é uma afronta à dignidade dos indivíduos homossexuais, negando-lhes o tratamento igualitário no que concerne ao respeito à sua autonomia para conduzir sua vida autonomamente, submetendo-os, contra a sua vontade e contra as suas visões e percepções do mundo, a um padrão moral pré-estabelecido. […] Permitir ao indivíduo identificar-se publicamente, se assim o quiser, como integrante da família que ele mesmo, no exercício da sua autonomia, logrou constituir, é atender ao princípio da dignidade da pessoa humana”

2 “Não seria pensável que se assegurasse constitucionalmente a liberdade e, por regra contraditória, no mesmo texto se tolhesse essa mesma liberdade, impedindo-se o exercício da livre escolha do modo de viver, pondo-se aquele que decidisse exercer o seu direito a escolhas pessoais livres como alvo de preconceitos sociais e de discriminações, à sombra do direito. […] Ninguém pode ser tido como cidadão de segunda classe porque, como ser humano, não aquiesceu em adotar modelo de vida não coerente com o que a maioria tenha como certo ou válido ou legítimo.

E a igual cidadania é direito fundamental posta na própria estrutura do Estado Democrático de Direito (art. 1º, inc. III, da Constituição). Seria de se indagar se qualquer forma de preconceito poderia acanhar a cidadania de quem, por razões de afeto e opções de vida segundo o sentir, resolvesse adotar modo de convivência estável com outrem que não o figurino tido como ‘o comum’.

A interpretação correta da norma constitucional parece-me, portanto, na sequência dos vetores constitucionais, ser a que conduz ao reconhecimento do direito à liberdade de que cada ser humano é titular para escolher o seu modo de vida, aí incluído a vida afetiva com o outro, constituindo uma instituição que tenha dignidade jurídica, garantindo-se, assim, a integridade humana de cada qual.

9. Essa escolha, de resto, põe-se no espaço de intimidade de cada um, o que também é objeto de expresso reconhecimento e resguardo constitucional (art. 5º, inc. X), que projeta para o plano social a eleição sentimental feita pelas pessoas e que merece não apenas a garantia do Estado do que pode ser escolhido, mas também a segurança estatal de que não sejam as pessoas alvo de destratamento ou discriminação pelo exercício dessa sua liberdade”.

3 “Se o reconhecimento da entidade familiar depende apenas da opção livre e responsável de constituição de vida comum para promover a dignidade dos partícipes, regida pelo afeto existente entre eles, então não parece haver dúvida de que a Constituição Federal de 1988 permite seja a união homoafetiva admitida como tal. Essa é a leitura normativa que faço da Carta e dos valores por ela consagrados, em especial das cláusulas contidas nos artigos 1º, inciso III, 3º, incisos II e IV, e 5º, cabeça e inciso I. […] Vale dizer: ao Estado é vedado obstar que os indivíduos busquem a própria felicidade, a não ser em caso de violação ao direito de outrem, o que não ocorre na espécie.”

DANIEL CARVALHO CARDINALI – Mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Advogado. Autor do livro “A judicialização dos direitos LGBT no STF: Limites, possibilidades e consequências”.

LÍVIA LEAL – Doutoranda e Mestre em Direito Civil pela UERJ. Pós-Graduada pela EMERJ. Professora Substituta da Faculdade Nacional de Direito – UFRJ. Monitora Acadêmica da EMERJ. Advogada.

Fonte: COLÉGIO NOTARIAL DO BRASIL - CONSELHO FEDERAL